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14 de fev. de 2016

Meus amores em São Paulo




Versão sonorizada e narrada pelo Milton Yung da rádio CBN

Meu amor por São Paulo é caso antigo, nasci no bairro Ipiranga, no comecinho dos anos 60; pertinho de onde um certo Pedro bradou a "independência".

A rua onde cresci na Vila Liviero sempre será minha, tomei posse no imaginário de tão lúdica que era, mesmo sendo friamente outra atualmente. Era de terra, pouca e boa vizinhança , muitos terrenos vazios, campinhos, pasto e matas para as crianças explorarem com as mais diversas brincadeiras e correr com seus cachorros.
Cirandas, pipas, rolimãs, árvores e seus balanços mágicos, voos de bicicleta tão fantásticos que guardo até hoje a sensação do vento no rosto...sim, era quase como voar( nunca sequer andei de avião).
  
Como era gostoso conversar nas noites de céu limpo e estrelado...Histórias de ETs, cantorias, piadas e papos que não acabavam mais, até alguma mãe gritar: -Já passou da hora de entrar! E de - Já vou, já vou! - as prosas continuavam mesmo com o risco iminente de algumas chineladas ao entrar em casa.
Em noites frias de inverno mal enxergávamos quem estava ao lado de tão intenso era o nevoeiro, cenário perfeito para voltar da casa da vizinha que tinha televisão (a novidade e sonho de consumo de todos) depois de assistir Cine Mistério (programação de filmes de terror como Drácula e Lobisomem). Ah, andar esses poucos metros até a porta de casa era um ato de coragem rapidíssimo, pernas para que te quero!
No dia seguinte acordava cedinho com os galos cantando, música sertaneja, cheiro de café e o apito das fábricas chamando os operários que sumiam na rua, envoltos em neblina e garoa, rumo a mais um dia de trabalho. E para nós crianças, era só mais um dia de aventuras, um dia a mais para viver em sua plenitude, produzir material farto para memórias do amanhã.

Meu primeiro amor de infância era irmão de meu amigo, numa noite, na brincadeira 'beijo, abraço ou aperto de mão' ele escolheu 'beijo', mas quando abriu os olhos e me viu, só quis mesmo dar a mão...Bem me quer, mal me quer...Minha primeira desilusão foi iluminada pelos vaga-lumes que brilhavam enlouquecidos, ao som dos grilos insistentes da noite quente e dos amigos a zombar. Um dia a família dele se mudou, perdi o  amigo e o amor que ainda viveria muito tempo, só em meu coração.

Já moça, meus pais separados, fui morar em Vila Mariana, depois passei uns tempos no interior com meu pai, gostei da cidadezinha pacata, mas não havia emprego e minha maior alegria era quando chegando em São Paulo, subindo as escadas rolantes da estação República do metrô, via minha cidade surgindo, linda, imponente...Como é bom voltar para casa, para nossa cidade mesmo com todos os defeitos de uma selva de pedra ela tem tesouros que só quem aqui nasceu sabe o valor.

Vivi um grande amor nesses tempos, amor que dessa vez mesmo sendo correspondido, não era meu. Um dia nos despedimos na véspera de Natal, na esquina da Avenida São João, em frente ao Largo do Paissandu, foi o beijo mais romântico de minha vida...E o mais triste...Eu ali parada, vendo-o atravessar a avenida enquanto minhas lágrimas desciam...De certa forma soube que estava próximo o fim. Voltei para casa chorando acompanhada pelas sombras dos misteriosos prédios do centro novo que ainda tinha muito de velho.
Até hoje toda vez que passo nessa esquina onde hoje tem uma loja de sapatos, lembro da cena e da sensação de abandono que o amor pode causar nos deliciosos delírios da juventude.

Tempos depois me apaixonei novamente, houveram beijos de despedidas, mas estes eram quase diários, na estação Vila Mariana. Depois de um dia de trabalho, não havia nada melhor do que essas despedidas que  muitas vezes eram um convite para ficar e aproveitar a fase tão gostosa que é o namoro. O suntuoso salão do antigo Cine Ipiranga foi palco de uma cena hilária desse namoro, quando quase saí no "braço" com uma menina que vendia balas, que ousadamente me ignorou e pegava no braço do meu noivo insistindo na venda...Esse episódio quase rendeu o fim do romance pelo meu ciúme ainda não domado na época, mas superamos, mais para frente até nos casamos.
 
Quantos anos se passaram, a cidade se modificou assim como todos nós.
Gosto de passear pelo Bosque da Cerejeiras do Parque do Carmo, zona leste que é onde moro hoje, lembrar de um affair virtual com pitadas fantasiosas de realidade e que talvez (muito provavelmente) tenha sido a despedida de minha vida sentimental, que deixou lembranças inesquecíveis, beijos, abraços, sem cobranças, sem jogos mentais, só carinho puro que sinto até hoje. Como talvez os amores devessem ser.

Caminho pelo parque ouvindo o zum-zum-zum dos insetos, o cantos dos pássaros, a alegria das crianças brincando, vendo o encantamento dos namorados...Vendo a vida ensaiando o último espetáculo na minha cidade, amor tão antigo.
Bosque das Cerejeiras SP



Dalva Rodrigues


Editei este finalzinho porque hoje 31-05-16 a Rádio CBN respondeu meu e-mail e será apresentado no programa em junho. Fiz esta crônica para participar do quadro CONTE SUA HISTÓRIA DE SP.
Feliz da vida pela resposta!