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20 de nov. de 2016

Os velhos jardins



Ando, sonhando acordada pelas ruas de minha infância, quando casas eram construidas em terrenos grandes, havia espaço para jardins, árvores e em alguns até mesmo gramados.

Caminho em tempos que algumas crianças ainda levavam flores para a professora mais querida:


Em quase todo quintal há um jardim, pelo menos nos arredores de minha casa é assim. Minha avó tem "mão boa" para plantas, estão sempre bonitas, viçosas , há plantas de vários espécies, vivem "felizes", acordam chorando gotas risonhas de orvalho nas manhãs frescas da cidade da garoa, parecem brincar de balanço com o vento.

São rosas, cravos, lírios, copos de leite, dálias, margaridas, palmas, samambaias, avencas, ervas para chá, temperos...
Muitas sombreadas por árvores frutíferas que compõem essa beleza singela, outras, esparramadas ao sol, esperam  para abrir às onze horas.

A maioria dos jardins não são elaborados, neste "mundo" não há paisagismo, é tudo bem natural e com o jeitinho da dona (digo donA porque neste tempo não vejo  homem cuidando de jardins) da casa, as plantas crescem pelo chão entre dentes-de-leão e também são plantadas rusticamente em latas, bacias, baldes, panelas velhas e vasos.

Tudo simples como a própria vida, o passar dos dias lentamente aproveitados, pelo menos é essa a sensação dentro do meu universo infantil.

De tempos em tempos minha vó doa seu tempo e carinho para as plantinhas, retira o mato, poda, aduba com estrume de cavalo [isso mesmo, nesta época há muitos cavalos circulando e catar esterco é comum] planta, replanta e tira algumas mudas

Com suas mãos ágeis marcadas pelo tempo, envoltas em terra boa, deixa tudo ainda mais bonito  para alegrar os olhos de quem vê.

Um hábito comum é a troca de mudas, quantas vezes batem palmas no portão e logo se ouve:

-Bom dia dona Brígida (minha vó paterna), como estão bonitas suas plantas!

E geralmente, depois de uma boa prosa vem o pedido de uma mudinha dessa ou daquela planta e a pessoa segue feliz seu caminho com sua nova esperança em flor.
 
Um dia você leva, no outro você traz.
Que bonito essa troca e nem por isso os jardins são todos iguais, cada um tem seu jeitinho, o que determina mesmo a beleza deles é a dedicação nos cuidados. 


É verdade que também tem uma ou outra vizinha que nunca dá ou troca mudas e nem por isso seus jardins são menos lindos, estão lá para serem apreciados por quem passa, causando admiração em uns e inveja em outros. E dona "fulana" chata só corre um risco: de uma criança arteira roubar uma flor para a professora ou para seu amor. Mas "mininu" é bicho esperto, ninguém vai perceber!

Acordo de minha "viagem" no tempo, vejo-me andando pelas ruas do agora; calçadas quebradas, vida verde em busca de sol despontando nas rachaduras, nos muros que supostamente nos protegem.  


Minha vó já se foi, pela terra que antes cobria suas mãos, seu corpo foi recebido. 

A menina já não existe,  as mãos marcadas agora são minhas.

Os tempos mudaram, os espaços diminuíram, muito concreto, pouco verde, pouco tempo para cuidar de plantas, poucas relações, a maioria das crianças brincam e crescem em creches e não em quintais divertidos e floridos, aos cuidados das avós.

O hábito de trocar mudas é raro, as pessoas mal se conhecem para ter esta intimidade, quem quer e pode ter um jardim, COMPRA em grandes mercados onde se encontra tudo (menos a "mão boa" para plantas), contrata um paisagista e tem um lindo jardim, que por mais que seja lindo, ao meu ver, falta emoção, falta  alma, falta história.

Os velhos jardins envelheceram com seus donos, se perderam no tempo...

Por vezes vejo jardins decadentes, com traços de terem sido maravilhosos, provavelmente quem cuidava deles não possui mais saúde e vigor ou morreram, deixando ali exposta sua ausência implícita e o desinteresse das novas gerações.
Ainda é lindo mesmo entre as ervas daninhas, afinal essas também merecem viver, é vida.
 

Em alguns casos os jardins não morrem com seus donos, entre ervas daninhas e galhos desobedientes, as flores ainda lutam bravamente para existirem, ainda se pode sentir a alma deles, de tudo que foram cenários:  o chão de terra batida, crianças brincando e rindo,  o barulho do balanço, cães enterrando  cuidadosamente seus ossos , as cadeiras no terreiro, as prosas, o cheiro de café...E o perfume das flores de um verdadeiro jardim.


Dalva Rodrigues



Comentários a respeito de divagações:

 Ainda bem que alguns ainda conseguem, mesmo que em espaços menores, dedicar um pouco desse amor por plantas. Eu não sou uma delas e nem vou dizer que é por culpa da falta de "mão boa", é falta de dedicação mesmo. O meu, nem atrevo mostrar!

Algumas das plantas de meus vizinhos Katia e Paulinho.

Ontem cortaram o abacateiro aqui ao lado de casa...

Progresso, economia, trabalho, sonhos, ninhos dilacerados e a natureza enfurecida sobrevivendo.

Foto linda do meu amigo Paulinho, quando abrir a janela, já não verá o abacateiro.



Eu demoro a escrever, mas qdo escrevo é novela, para quem leu até o fim, meu muito obrigada!